ORGULHOSAMENTE SÓ
Como é próprio de uma época em que a traição, a vileza, a covardia e a
abjecção são os traços dominantes, o que se censura, hoje, a Salazar é o que
ele teve verdadeiramente de grande e elevado.
Classifica-se de atitude suicida a sua oposição férrea e persistente a todos os oportunismos e
a todas as diversas soluções políticas, que traduziam
apenas a vontade de não lutar pela integridade das fronteiras seculares de
Portugal, quando foi esse, ao invés, um dos seus mais belos títulos de nobreza:
ter reconhecido lucidamente que a única solução política digna era combater à
outrance pela grandeza da Nação, que só existia esse meio de conservar o que
era nosso há centenas de anos e de assegurar um futuro de prosperidade e
ordem e que, assim, no caso de se perder tudo o resto, se salvava, ainda, o
bem mais precioso de um povo, que é a sua honra. Porque sobrevive-se,
enquanto Pátria a uma derrota gloriosa, mas não a um abandono ao inimigo
por comodismo, medo, indiferença pelo interesse comum.
Salazar foi proclamado um carrasco por ter ordenado às tropas
estacionadas na Índia que se batessem sem esperança de vitória (ao contrário
do que acontecia nos demais territórios, nalguns dos quais se conseguiu,
consoante é o caso de Angola em Abril de 74, uma pacificação quase
completa) e exclusivamente para honrar a bandeira das quinas, sob cujas
dobras tantos prodígios de heroísmo se tinham desenrolado naquelas
paragens.
Da indignação da Esquerda nem se fala. Mas também na chamada
direita houve quem o reprovasse. Dum lado e doutro não havia sequer uma
compreensão mínima daquilo que exigiam e obrigavam as normas elementares
da ética militar e patriótica — dessa ética que levou Moscardó a não ceder no
Alcazar ao ameaçarem-no com o fuzilamento do filho, que fez com que
guarnições alemãs de cidades das costas normandas e bretãs, cercadas há
meses, esmagadas por bombardeamentos, ainda resistissem no segundo
trimestre de 45, que impeliu os Mas italianos, no momento em que foram
descobertos na noite pelos projectores do porto de Malta, a lançarem-se para a
frente, nenhum sobrevivendo, E, até, sem o estímulo do patriotismo, só para
cumprirem a sua palavra de soldados, se fizeram imolar no México, em
Camerone, os homens da Legião Estrangeira. Tudo isto, pelos vistos, não
passava de absurdos, tolices, tontarias, demências. E nem um simples «baroud
d`honneur», como o dos regimentos franceses de Madagascar, isolados e
abandonados, na altura do desembarque inglês na ilha, foi considerado
admissível. O que era louvável e de aplaudir era depor as armas sem tir-te nem
guar-te, no instante em que o exército adversário avançava em som de peleja.
A entrega pura e simples eis a solução. Salazar, que pensava de forma oposta,
assumiu as proporções de um monstro.
A vergonha da Índia, perante a qual não houve um sobressalto, unânime
ou quase, de dor e indignação, representou o teste, ou melhor, a provação
decisiva.
António de Oliveira Salazar compreendeu-o. E, se fosse da fibra moral
(ou imoral) dos que actualmente cospem injúrias sobre a sua memória, teria
arrepiado caminho. Poderia desse modo conseguir pretorianos encantados da
vida a protegê-lo e a louvá-lo, distribuir panem et circenses em abundância,
captando frenéticos aplausos das multidões, obter apoios calorosos das
potências dominantes, estar seguro de obter na história — escrita pelos
vencedores — as parangonas de um libertador formidável, à Roosevelt ou à De
Gaulle.
Não o quis, e, orgulhosamente só, preferiu manter-se ao leme
apontando a mesma rota, que era a rota do dever.
Ainda não tinha fechado os olhos e já se entrava no caminho das
autonomias crescentes para as províncias ultramarinas (que — admitia-se sem
rebuço — viriam acaso a produzir a independência futura das mesmas) como
se a missão do Estado fosse andar a semear Brasis pelo mundo, em vez de
velar pela intangibilidade do património histórico e espiritual herdado dos
antepassados.
Depois, os ventos semeados deram as tempestades previsíveis. Veio o
dia de S. Traidor e iniciou-se, oficialmente, a construção de um país novo — ou
antes de uma horda movida pelos instintos de prazer e egotismo —, para o que
procedeu, desapiedamente, à destruição do que era um autêntico país — o
nosso país. Em nome da edificação de um Portugal maior, reduziram-no a um
inviável e anárquico rectângulo peninsular. Em nome da liberdade, impôs-se a
ideologia obrigatória do antifascismo. Em nome dos direitos do homem,
espancou-se, torturou-se, elaboraram-se leis penais com efeito retroactivo,
agravadas a seguir por uma triste assembleia que se chama da República. Em
nome da paz, centenas de milhares de brancos, pretos e mestiços tombaram
vítimas da descolonização exemplar, ao passo que milhões de outros, sem
serem ouvidos e achados, foram entregues ao jugo soviético. Em nome do
bem-estar dos desfavorecidos e desprotegidos, arrasou-se a economia,
estabelecendo-se o princípio, que conduz à miséria geral, de que o importante
é diminuir o trabalho e aumentar o ganho. Em nome da independência
nacional, mendigam-se empréstimos aos capitalismos lá de fora, empenhandose
o que nos resta.
Justo é que os autores dessa obra de aniquilamento total celebrem, com
júbilo, a data em que lhe deram início. Os profissionais das batalhas,
vocacionados pelo «appel des armes» de que falava Psichari, que juraram dar
a vida pela pátria e, ao fim de três ou quatro comissões em Angola,
Moçambique, ou Guiné, já estavam fatigados e o que queriam era retornar ao
remanso dos quartéis.
Só achamos mau que quantos o tornaram cinza e nada persistam em
falar em Portugal, no lugar de aludirem à admirável Abrilândia que edificaram
entre gente não remota e sem perigos e guerras esforçados.
Mas enquanto os coveiros da nação se arrastam no seu carnaval,
aqueles para quem a fidelidade não é uma palavra sã, para além dos vermes e
pigmeus actuais, volvem as suas mentes e corações para a figura cimeira de
Salazar, o derradeiro estadista nascido nesta terra para quem se pode erguer o
pensamento sem se ter de corar de pejo e tristeza.
António José de Brito